Mobilidade Urbana

A segurança rodoviária infantil emerge como um pilar fundamental para o desenvolvimento de cidades sustentáveis e inclusivas. O relatório Cities for All: Ranking Europe’s Cities on Child-Friendly Urban Mobility revela que as metrópoles europeias que priorizam medidas como ruas escolares, limites de velocidade reduzidos e infraestruturas cicláveis protegidas não só protegem os mais jovens como elevam a qualidade de vida para todos os habitantes.

A Urgência de Repensar a Mobilidade Urbana para Proteger as Crianças

As estatísticas são claras: diariamente, 18 crianças sofrem ferimentos graves e uma perde a vida em acidentes rodoviários na União Europeia. Em Portugal, embora os dados recentes apontem para uma redução gradual de sinistros, a vulnerabilidade infantil persiste, especialmente em zonas urbanas com tráfego intenso e infraestruturas desadequadas. O relatório destaca que 32% das mortes de crianças em estradas ocorrem quando estas estão a pé, um número três vezes superior à média geral.

A exposição à poluição atmosférica agrava este cenário. Crianças respiram mais rápido e estão mais próximas do solo, onde os poluentes se concentram, aumentando riscos de asma, alergias e comprometimento do desenvolvimento pulmonar. Cidades como Paris e Helsínquia, líderes no ranking, demonstram que a combinação de limites de 30 km/h e corredores cicláveis segregados reduz emissões e acidentes, criando ambientes mais saudáveis.

Três Pilares para uma Cidade Amiga das Crianças (e de Todos)

  1. Ruas Escolares: Transformar Entornos Educativos em Espaços Seguros

As ruas escolares, vias com restrição de tráfego motorizado em horários de entrada e saída, surgem como uma das medidas mais eficazes. Londres lidera com mais de 500 implementações, cobrindo 27% das escolas primárias. Em Portugal, projetos piloto em Lisboa e Porto mostram reduções de até 40% nos níveis de NO₂, mas a escala ainda é limitada.

Por que prioritizar esta medida?

  • Redução de atropelamentos: Estudos em Milão e Turim comprovam que zonas pedonais permanentes perto de escolas diminuem acidentes em 60%;
  • Promoção de mobilidade ativa: Crianças em cidades com ruas escolares têm 3x mais probabilidade de ir a pé ou de bicicleta para a escola;
  • Impacto comunitário: A apropriação do espaço por famílias e comerciantes locais fortalece o tecido social, como visto em Antuérpia e Lyon.
  1. Limites de Velocidade a 30 km/h: Uma Revolução Silenciosa

Paris, Bruxelas e Amesterdão destacam-se por terem 80% das vias urbanas com limite de 30 km/h, resultando em quedas de 25% nas mortes rodoviárias. Em Portugal, a implementação desta medida tem sido gradual, mas cidades como Coimbra e Braga já reportam reduções de 15% em colisões.

Benefícios comprovados:

  • Tempo de reação ampliado: A 30 km/h, a distância de paragem diminui de 28 para 13 metros, crucial em zonas com peões;
  • Redução de ruído: Níveis sonoros caem até 3 dB, equivalente a diminuir pela metade o volume do tráfego;
  • Equidade social: Bairros periféricos, tradicionalmente mais expostos a tráfego rápido, tornam-se mais seguros e conectados.
  1. Infraestrutura Ciclável Protegida: Ligar Bairros com Segurança

O relatório revela que apenas 17% das redes viárias europeias possuem ciclovias segregadas. Paris e Helsínquia, com 48% de cobertura, mostram que investimentos contínuos geram cultura ciclística: 40% dos alunos do secundário usam bicicleta diariamente nestas cidades. Em Portugal, o desafio persiste, Lisboa tem 90 km de ciclovias, mas apenas 30% são totalmente segregadas.

Estratégias de sucesso:

  • Ciclovias de uso misto: Em Barcelona, corredores partilhados com transporte público aumentaram a adesão em 22% sem comprometer a segurança;
  • Sinalização intuitiva: Copenhaga utiliza pavimento colorido e semáforos prioritários para ciclistas, reduzindo conflitos em 45%;
  • Integração com transporte público: Estações de comboio e metro com parqueamentos cicláveis ampliam o raio de mobilidade, como visto em Berlim e Amesterdão.

Casos de Estudo: Lições de Cidades Líderes

Paris: A Metamorfose de uma Capital

Sob a liderança da presidente Anne Hidalgo, Paris transformou-se num laboratório de mobilidade sustentável. A generalização de 30 km/h em 2021, combinada com 1.000 km de ciclovias, resultou numa queda de 40% nas emissões de CO₂ desde 2015. O projeto Rues aux Écoles pedonalizou 300 ruas escolares, com vegetação e áreas de lazer, aumentando em 70% o número de crianças que vão a pé para a escola.

Helsínquia: Planeamento Urbano com Visão de Longo Prazo

A capital finlandesa investiu décadas em infraestrutura ciclável integrada. O plano Cycle Strategy 2030 visa conectar todos os bairros com vias segregadas, prioritizando rotas escolares. Resultado? 60% das crianças de 7 a 12 anos deslocam-se de bicicleta no inverno, graças a pavimento anti-gelo e iluminação adaptada.

A triste realidade portuguesa

De acordo com o presente estudo, Lisboa é um dos piores centros urbanos europeus para a mobilidade urbana infantil. A capital portuguesa ficou na 35.ª posição do ‘ranking’ de 36 cidades europeias avaliadas pelos “esforços em dar prioridade às crianças nas suas decisões de mobilidade urbana”.

A elaboração do ‘ranking’ teve como “indicadores-chave” a adoção de ruas escolares, que limitam o tráfego motorizado, a extensão dos limites de velocidade seguros (30 km/h ou menos) e a disponibilidade de infraestruturas cicláveis protegidas.

Em termos globais, a cidade de Paris (França) foi a que apresentou melhor desempenho, com resultados “consistentes” nos três indicadores analisados, seguindo-se Amesterdão (Países Baixos) e Antuérpia (Bélgica).

No que diz respeito a ruas escolares (artérias junto a escolas primárias onde é dada prioridade aos peões e ciclistas, sendo o tráfego motorizado limitado) o ‘ranking’ é liderado por Londres (Reino Unido), Milão (Itália) e Paris.

Neste indicador, Lisboa, que não tem nenhuma rua escolar, ocupa o 33.º lugar do ‘ranking’, estando apenas à frente, com piores indicadores, das cidades de Madrid (Espanha), Munique (Alemanha) e Sofia (Bulgária).

A capital portuguesa volta a ter um mau desempenho no indicador das velocidades seguras, ocupando 32.º lugar de uma lista encabeçada por Paris, Bruxelas e Lyon (França). O município português, presidido por Carlos Moedas (PSD), tem apenas 5% da rede viária com um limite de velocidade de 30 km/h, contra os 88,9% de Paris1.

Já no indicador das infraestruturas cicláveis protegidas, Lisboa ocupa o 31.º lugar de uma lista novamente liderada por Paris, a que se segue Helsínquia (Finlândia) e Copenhaga (Dinamarca). Lisboa tem uma cobertura de 7% de infraestruturas cicláveis protegidas, enquanto Paris tem 48%1.

A avaliação das 36 cidades foi feita a nível nacional por várias associações, junto de administrações municipais e outros organismos públicos. No caso de Lisboa tratou-se de uma ação coordenada pela Zero, em colaboração com a Kidical Mass, Ecomood e Lisboa Possível.

Em síntese, o relatório evidencia que Lisboa está significativamente atrás das principais cidades europeias no que respeita à mobilidade urbana amiga das crianças, destacando a ausência de ruas escolares, a reduzida implementação de limites de velocidade seguros e a escassa infraestrutura ciclável protegida.

Recomendações 

  1. Legislação Local Proativa: Os Municípios devem regulamentar ruas escolares e zonas 30 km/h, aproveitando a autonomia conferida pelo regime jurídico da mobilidade suave (Lei n.º 99/2019);
  2. Participação Comunitária: Envolver pais, escolas e crianças no desenho de projetos, replicando o modelo de orçamento participativo de Lisboa;
  3. Dados Abertos: Publicar estatísticas detalhadas sobre acidentes envolvendo crianças, permitindo intervenções precisas;
  4. Campanhas de Sensibilização: Utilizar influencers locais e escolas para normalizar deslocações e pé e de bicicleta, tal como feito na campanha À Escola com Energia do Porto.

Conclusão: Construir Cidades para as Crianças é Investir no Futuro de Todos

As cidades que lideram o ranking europeu demonstram que segurança rodoviária infantil não é um custo, mas um investimento em saúde pública, coesão social e sustentabilidade. Portugal tem oportunidade única de aprender com estes casos, adaptando soluções às suas particularidades geográficas e culturais. Ao prioritizar ruas escolares, velocidades seguras e ciclovias protegidas, os municípios não só protegerão os mais jovens como criarão ambientes urbanos mais resilientes e inclusivos para todas as gerações.

A mudança exige coragem política e participação cívica, mas os benefícios — vidas salvas, ar mais limpo, comunidades ativas— são incomensuráveis. Que as lições de Paris, Helsínquia e Londres inspirem uma nova era de planeamento urbano em Portugal, onde cada criança possa crescer com segurança e liberdade.