O Impacto da Altura dos Capôs dos SUV na Segurança de peões e ciclistas
A segurança rodoviária enfrenta um novo desafio preocupante: o aumento constante da altura dos capôs dos automóveis. Este fenómeno, impulsionado pela popularidade crescente dos SUV, está a contribuir para um ambiente rodoviário cada vez mais perigoso para os utentes mais vulneráveis, especialmente para as crianças.
A tendência alarmante dos veículos cada vez mais altos
De acordo com um estudo abrangente da Federação Europeia de Transportes e Ambiente (T&E), a altura média dos capôs dos automóveis novos vendidos na Europa tem vindo a aumentar consistentemente. Os dados revelam um crescimento de meio centímetro por ano, passando de 76,9 cm em 2010 para 83,8 cm em 20241. Este aumento de 7 centímetros numa década e meia representa uma evolução significativa que coloca em risco a segurança de todos os utentes da estrada.
A tendência está intimamente ligada ao boom dos SUV no mercado automóvel europeu. Enquanto em 2010 estes veículos representavam apenas 11,5% das vendas, em 2024 a sua quota de mercado atingiu os impressionantes 55,5%1. Este crescimento exponencial dos veículos utilitários desportivos está a redefinir a paisagem automóvel, mas com consequências graves para a segurança rodoviária urbana.
O crescimento dos SUV no parque automóvel português tem sido notório na última década, refletindo uma tendência que acompanha o panorama europeu. De acordo com dados da Associação Automóvel de Portugal (ACAP), em 2019 foram vendidos 67.345 SUV em Portugal, demonstrando já então uma forte procura por este tipo de veículo. Este número continuou a aumentar de forma significativa e, em 2023, o mercado nacional de SUV atingiu um total de 91.751 unidades vendidas. Estes valores evidenciam não só a popularidade crescente dos SUV entre os consumidores portugueses, mas também o impacto direto desta preferência no perfil do parque automóvel nacional, contribuindo para o aumento da altura média dos capôs e, consequentemente, para os desafios acrescidos à segurança rodoviária urbana.
Impacto Mortal: Como os capôs altos aumentam o risco de morte
Um estudo belga que analisou 300.000 acidentes rodoviários demonstrou que um aumento de apenas 10 centímetros na altura do capô (de 80 para 90 cm) eleva o risco de morte em 27% para peões, ciclistas e outros utentes vulneráveis da estrada. Este aumento do risco não é apenas estatístico, tem implicações reais e devastadoras para famílias e comunidades em toda a Europa.
A física por detrás desta estatística é simples mas brutal. Os veículos com capôs mais altos tendem a atingir os peões adultos acima do centro de gravidade, impactando diretamente os órgãos vitais no tronco. Esta dinâmica resulta frequentemente numa projeção do peão para a frente e para baixo, com maior probabilidade de ser atropelado novamente pelo próprio veículo. Em contraste, os capôs mais baixos tendem a atingir as pernas dos peões, permitindo que estes caiam sobre o veículo ou sejam desviados, aumentando significativamente as suas hipóteses de sobrevivência.
O perigo invisível: Crianças em risco
Para as crianças, a situação é ainda mais preocupante. Os testes encomendados pela T&E revelaram uma realidade chocante: um condutor de altura média europeia, ao volante de uma carrinha RAM TRX, não consegue ver crianças até aos nove anos de idade que estejam diretamente em frente ao veículo. No caso do Land Rover Defender, a visibilidade fica comprometida para crianças até aos quatro anos e meio.
Portugal e a Realidade Europeia
A situação em Portugal reflete a tendência europeia, mas com algumas particularidades. O estudo T&E identifica a Itália como o país com os capôs mais altos da Europa (84,7 cm em 2024), enquanto a Alemanha apresenta a média mais baixa (82,3 cm). Portugal, embora não incluído nesta análise específica, não está imune a esta tendência, especialmente considerando a crescente popularidade dos SUV no mercado nacional.
Vária entidades tem alertado para esta problemática, sublinhando que os SUV e carrinhas pickup com capôs elevados aumentam significativamente o risco de traumatismos fatais em caso de atropelamento. As organizações defendem que estes veículos proporcionam menor visibilidade tanto para peões como para condutores e promovem um falso sentimento de segurança que pode levar a uma condução mais perigosa.
Esta redução da visibilidade não é apenas um problema teórico. Traduz-se em situações reais de perigo quando os veículos saem de garagens, estacionamentos ou quando circulam em zonas residenciais e escolares. A combinação de capôs altos com a menor estatura das crianças cria pontos cegos que podem ter consequências fatais.
A proposta de regulamentação: Limite de 85 cm
Face a esta crescente ameaça à segurança rodoviária, a T&E e a Campanha Cidades Limpas propõem uma solução concreta e mensurável. A recomendação principal é o estabelecimento de um limite máximo de 85 cm para a altura dos capôs dos automóveis novos, a implementar a partir de 2035.
Esta altura não foi escolhida arbitrariamente. O limite de 85cm visa proteger 95% das mulheres adultas europeias, já que apenas 5% têm o centro de gravidade abaixo dos 86 cm. Ser atingido abaixo do centro de gravidade aumenta significativamente as taxas de sobrevivência, tornando este limite uma medida de proteção baseada em evidência científica sólida.
A proposta inclui ainda várias medidas complementares:
- Inclusão da altura do capô nos certificados de registo dos veículos novos até 2030;
- Adição da largura, comprimento e altura total dos veículos aos certificados de registo;
- Implementação de um teste de visibilidade infantil para reduzir os pontos cegos dos veículos.
O calendário legislativo e a urgência da ação
Para que estas medidas se tornem realidade, a Comissão Europeia deve apresentar propostas legislativas até julho de 2027, prazo limite para a revisão da legislação europeia de segurança veicular. O calendário proposto prevê um período de transição de 8,5 anos, desde a apresentação da proposta em 2027 até à aplicação em 2035, permitindo à indústria automóvel adaptar-se gradualmente às novas exigências.
Este período de transição é crucial para evitar perturbações na produção e permite que os fabricantes integrem os novos limites nos seus ciclos de desenvolvimento e renovação de modelos. Muitos modelos serão renovados duas a três vezes entre 2027 e 2035, proporcionando oportunidades naturais para implementar as alterações necessárias.
Benefícios Ambientais e Eletrificação
Contrariamente ao que se poderia pensar, a limitação da altura dos capôs não prejudica a eletrificação dos veículos, pelo contrário, pode acelerá-la. Os dados de 2024 mostram que a altura média dos capôs dos veículos elétricos é 2,3 cm inferior à média geral do mercado. Capôs mais baixos reduzem o consumo energético, proporcionando maior autonomia com menos bateria, um benefício duplo para a sustentabilidade e eficiência dos veículos elétricos.
Medidas Locais e Iniciativas Municipais
Enquanto se aguarda a legislação europeia, várias cidades estão a tomar iniciativas próprias. Paris, Lyon, Bordéus e Grenoble, em França, bem como Aachen, Colónia, Koblenz e Tübingen, na Alemanha, já implementaram taxas de estacionamento baseadas no peso ou tamanho dos veículos. Estas medidas locais demonstram que é possível agir a nível municipal para desencorajar o uso de veículos excessivamente grandes em ambientes urbanos.
Em Portugal, medidas similares poderiam ser implementadas pelos municípios, criando incentivos económicos para a escolha de veículos mais seguros e adequados ao ambiente urbano. A ligação das taxas de estacionamento e impostos municipais às dimensões e peso dos veículos representaria um passo importante na direção certa.
O Futuro da Segurança Rodoviária
A questão da altura dos capôs insere-se numa problemática mais ampla do que a T&E designa por “carspreading”, a tendência para veículos cada vez maiores que ocupam mais espaço público e representam maior risco para outros utilizadores da via. Esta tendência não traz benefícios evidentes para a sociedade, mas impõe custos significativos em termos de segurança, ambiente e qualidade de vida urbana.
A evidência científica é clara: capôs com alturas entre 60 e 75 cm oferecem a melhor proteção para peões em caso de acidente. O risco de ferimentos graves na cabeça aumenta quando a altura excede os 80 cm, e capôs com 100 cm ou mais são considerados “mais agressivos” e estão associados a maior risco de ferimentos graves.
A urgência de agir
A crescente altura dos capôs dos automóveis representa uma ameaça clara e crescente para a segurança rodoviária, especialmente em ambiente urbano. Com crianças particularmente vulneráveis e taxas de mortalidade que aumentam 27% com cada 10 cm adicionais de altura do capô, a inação não é uma opção responsável.
A proposta de limitação da altura dos capôs a 85 cm até 2035 representa uma medida equilibrada, baseada em evidência científica sólida e com tempo suficiente para implementação pela indústria. Esta medida, combinada com melhorias na visibilidade e informação mais completa para os consumidores, pode salvar milhares de vidas nos próximos anos.